Cleiver Fernandes dribla dificuldades no Rio e dá início à trajetória ‘na gringa’ em pleno auge da carreira
O amazonense Cleiver Fernandes encara o invicto Renat Khavalov, da Rússia, no próximo sábado (25), na primeira luta do card principal do PFL Road to Dubai Champions Series. O evento abre a temporada da organização e o peso-galo brasileiro faz sua primeira apresentação fora do país. Na bagagem, um cartel de nove vitórias e uma derrota. O trajeto até o palco da estreia internacional, nos Emirados Árabes, passa por curvas sinuosas e um roteiro dramático. Com origem em Manaus, a caminhada improvável até o debute global fez longa escala no Rio de Janeiro, para onde Cleiver se mudou aos 15 anos. Na capital fluminense, em meio à penúria financeira, se aventurou em diferentes atividades – dentre as quais, entregador da hamburgueria de José Aldo.
– Tenho até hoje a bicicleta que entregava hamburguer. Depois, fui promovido ao balcão, atendendo aos pedidos que chegavam – detalha.
A jornada como funcionário do restaurante começava logo depois dos treinos de jiu-jítsu na Nova União, localizada no bairro do Flamengo, Zona Sul do Rio. No CT, Cleiver conheceu Aldo e outros grandes nomes do esporte. A oportunidade de trabalhar na hamburgueria surgiu a partir da boa relação que estabeleceu com o astro do UFC na academia. Ainda engatinhando no esporte, o amazonense teve de batalhar para sobreviver a mais de 4 mil quilômetros da terra natal.
Mudança para o Rio
Atualmente, Cleiver vive com a mulher em Dubai. Na cidade, o casal ministra aulas de artes marciais em uma escola pública e se prepara para o aguardado embate na PFL. A mudança para a capital da extravagância se deu há seis meses, após uma proposta direcionada à companheira Rayla Melo, faixa-preta de jiu-jítsu. No ano passado, uma companhia global de professores de luta se interessou pelo trabalho da brasileira.
– Fizeram a proposta para ela e vim acompanhá-la. Ela divide a caminhada comigo. Se prepara comigo. Minha esposa me levou a um outro nível – declara, apaixonado.
Dono de uma academia de lutas em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio, o empresário acompanhava os dois filhos em um campeonato na capital amazonense. Quando os caminhos de Ygor e Yago, filhos de Márcio, cruzaram os de Cleiver em determinada fase da competição, o encanto com o talento do menino prodígio foi quase instantâneo.
– Depois da competição, o Márcio foi à academia em que eu treinava em Manaus para me avaliar. No fim da atividade, avisou que mandaria minha passagem para morar no Centro de Treinamento dele, no Rio de Janeiro. Ele falou que eu não me preocuparia com nenhum gasto – lembra Cleiver.
Aflita com a mudança, a mãe questionou a decisão do adolescente, ainda com 15 anos de idade. Sem nunca ter viajado de avião antes, Cleiver acreditou nas proposições do empresário carioca e mergulhou no desconhecido, ainda sem qualquer garantia. Antes de entrar no avião, prometeu à mãe que a aventura renderia frutos.
– Não se preocupe. Eu volto campeão – tranquilizou-a.
Cleiver, de fato, voltou, mas ainda não campeão. Depois de dois anos morando no CT de Márcio Fernandes com todas as despesas custeadas, a parceria esvaiu-se. Perto de completar a maioridade, aportou na terra natal para um período sabático ao lado da família: foram seis meses longe dos treinos. Apesar de muito grato pela experiência, o jovem alimentava anseios que se desencontravam do treinador.
– Professor Márcio achava meio bizarro o MMA, não gostava muito. Eu queria. Decidi arriscar. Foi na cara e na coragem – resume.
No retorno à capital fluminense, o garoto tinha um objetivo bem definido: se arriscar no MMA. Criado na década de 1990, o esporte ainda não tinha a afeição de Márcio Fernandes – nuance que contribuiu para abreviar a parceria da dupla. O novo destino era a academia “Checkmat”, do mestre Léo Vieira, lugar em que Cleiver encontrou acolhimento para as pretensões na modalidade.
Sem o suporte – e a moradia – de outrora, o Morro do Cantagalo, na Zona Sul, foi a base de Cleiver no início da segunda estadia em terras cariocas. Lá, foi acolhido por um projeto social. Àquela altura, a carreira internacional ainda era um sonho distante. De Manaus, o pai tentava, sem êxito, manter uma ajuda mensal de R$ 200, valor que mal supria os gastos com alimentação básica.
– Um dia meu pai me mandou dinheiro. Comprei R$ 50 de pães e R$ 30 de guaraná natural. Era minha alimentação do mês. Comia dois pães de manhã e dois pães à noite. Treinava jiu-jítsu todos os dias. Fazia preparação, treinava jiu-jítsu de manhã, de noite, e foi assim ao longo de mais ou menos um mês – recorda.
A situação financeira da família piorou. Encurralado, o pai teve de interromper o auxílio. Para sobreviver, Cleiver trabalhou como segurança de um estabelecimento comercial e atendente de telemarketing. Apesar dos apertos, garante que nunca passou fome.
Para tal, em momentos de mais turbulência, contou com a ajuda de desconhecidos, em especial de Fernando Camonga, dono de uma pensão na comunidade do Cantagalo. Ao tomar conhecimento de um momento difícil do garoto, o homem lhe ofereceu refeições gratuitas até que tudo melhorasse.
– Esse cara nunca me cobrou um real. Ele matou a minha fome. Foi aí que consegui me impor melhor nos treinos (graças a uma melhor alimentação). Foi a partir daí que aconteceu a mudança: o Cleiver do jiu-jítsu para o Cleiver do MMA – rememora, grato.
Início na Nova União
Em 2017, aos 22 anos, Cleiver precisou de pouco mais de um minuto para finalizar Vinicius Lessa com uma chave de joelho. O confronto, válido pelo Shooto Brasil 76, marcou a estreia do lutador no MMA nacional. Para chegar ao cage da Arena Upper, no Flamengo, onde lutou profissionalmente pela primeira vez, o amazonense contou com a ajuda de Ronys Torres, importante nome da modalidade.
Cleiver aprimorou técnicas de MMA e construiu relações na Nova União que impulsionaram sua carreira. Tornou-se amigo de José Aldo e fortaleceu vínculos com outros grandes nomes do esporte, como Léo Santos. Segundo o lutador amazonense, Aldo continua a orientá-lo até hoje. Ele lembra, ainda, que continuou trabalhando no empreendimento do amigo mesmo depois que os laços se estreitaram.
– Ele (José Aldo) foi o cara que me levou pela primeira vez ao Maracanã. Sou flamenguista igual a ele. Fiquei fascinado. A primeira vez que fui a um restaurante muito “top” também foi com o Aldo. Sou grato pra caramba por isso. Sempre estive ao lado dele. Sempre conversei muito – revela.
Depois da vitória inquestionável na luta de estreia no profissional diante de Vinicius Lessa, em 2017, Cleiver fechou o primeiro contrato publicitário por R$ 600 mensais. O valor era suficiente para custear o aluguel de um apartamento, que pertencia a um amigo, em uma comunidade no Flamengo, próxima à academia. Paralelamente, o rapaz mantinha cerca de 10 alunos de “personal fighting”, que lhe rendiam quantia suficiente para abandonar as entregas na hamburgueria. Era o início do desafogo financeiro.
Derrota, medo e renovação
Meses mais tarde, na segunda luta da carreira, diante de Gabriel Braga, Cleiver não conseguiu repetir o desempenho imponente da estreia. Com um cruzado e um direto acachapantes, Braga venceu a luta com um nocaute a dois minutos do fim do primeiro round. Aflito – e precipitado -, o amazonense desabafou ao seu entorno que um novo revés poderia representar o fim da curta carreira.
O palco de sua luta seguinte era especial: a cidade de Manaus, onde tudo começou. Convidado do evento Mr. Cage, Cleiver subiu ao octógono para um dos mais aguardados combates do card principal. O adversário era o também amazonense Thiago Castro. Sete anos de idade os separavam.
– “Se eu perder aqui, já fico por aqui mesmo”, pensei. Havia levado uma mala gigante para Manaus. Estava preparado para isso. Meu adversário era mais experiente que eu – lembra.
Cleiver relata que ficou surpreso com o aquecimento do oponente, que desferia golpes violentos e repletos de ódio na manopla. Ao começar a luta, no entanto, Thiago demonstrou certo nervosismo e abriu brecha para ser dominado. Depois de puxar para a guarda, o pupilo de José Aldo aplicou uma chave de panturrilha e finalizou a luta no primeiro round, com apenas um minuto. O golpe rendeu a ele o Prêmio Oswaldo Paquetá de 2018 – uma espécie de “Oscar” do MMA nacional.
– Na mesma semana, peguei o dinheiro que ganhei da luta e comprei minha passagem de volta para o Rio. Recarreguei minhas energias e falei: “vou embora continuar o meu trabalho” – celebrou.
A vitória na cidade natal carregava um simbolismo importante. Reticente sobre a continuidade da carreira, Cleiver se abasteceu de confiança após o triunfo. O momento também trouxe à tona memórias afetivas, que o fizeram revisitar um marco de sua infância: o dia em que, aos 12 anos, se apaixonou pelo MMA — curiosamente, ao assistir à derrota de um lutador brasileiro.
Fonte: Ge